sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Avenida Brasil: a catarse de um vilão titubeante



Nunca uma novela das oito esteve tão próxima do cinema como Avenida Brasil, no capítulo da quinta-feira (11/10). Com cenas capazes de remeter o telespectador a clássicos como “Sob o domínio do medo” (Sam Peckinpah) ou a “Horas de desespero” (William Wyler), as tomadas feitas no barraco de Mãe Lucinda mostraram como uma trama novelesca pode se alçar ao requinte de grandes obras cinematográficas. A fotografia, impecável, conciliou o clima sombrio da circunstância narrada com um ambiente claustrofóbico que, embora escuro, não deixou de evidenciar os movimentos dos personagens e sua precisa identificação. Pois é, via-se com clareza a tudo e a todos.

Essa aproximação com algum thriller da telona não foi, entretanto, o grande mérito do capítulo. Por meio dele, o telespectador acompanhou a derrocada de um personagem sui generis da teledramaturgia brasileira: um vilão titubeante, submisso e nada exitoso. As inúmeras desventuras por ele amealhadas ao longo da trama certamente culminariam no evidente desfecho de sua morte. Tanto melhor que assim fosse, sobretudo porque seria ela, em momento imediatamente anterior, o elemento ensejador da catarse do desgraçado personagem.

No barraco de Lucinda, o cenário estava quase completo. Além de ter levado Carminha para lá, Max foi surpreendido com o auxílio do acaso: para o espetáculo que pretendia realizar, contou com a presença de Nina. De posse da pistola antes furtada de Tufão, subjugou a todos. Amarrou os pais, a ex-mulher – a quem não cansou de chamar de vagabunda – e a pretensa amante. Regado a goles cadenciados de cachaça, revelou que nem mesmo ele se amava e assinalou o desprezo que sempre recebeu dos pais. Iniciava-se ali a purgação que seria coroada com a evocação do dia do Juízo Final. Antes de sua descida ao inferno – como se estivesse ciente que seu único destino seria aquele –, Max lograria ter algo que jamais conseguiu: Nina. A expectativa da curra acentuou ainda mais o clima de tensão no barraco, que só foi quebrado com a heroica e piegas chegada de Jorginho.

Depois de dominar o filho, atirou aos quatro ventos uma profusão de diatribes, revelando recalques que ninguém imaginou povoar suas ideias. Em tempos mais ditosos, ele ansiava pela constituição de uma família. Mostrou-se profundamente desgostoso ao mencionar que tinha planos para o filho. Queria dar seu nome a ele, mas, por imposição de Carminha, o guri se chamou Cristiano. “Você gostava de mim”, revelou ao garoto, reivindicando a paternidade afetiva que Tufão lhe roubara. “Era assim que você me chamava: papai“, relatou ao menino. “Você não se lembra?”. É claro que Jorginho não se recordava de nada. Era pequeno ainda, sem memória formada. Também não se lembrava de que foi o pai biológico quem lhe presenteou com a primeira bola de futebol. Com ele, jogava pelada nos fundos de sua casa. Com essa revelação, de maneira inédita na trama, o vilão pleiteava para si os tributos que o menino pagava a Tufão pelo suposto talento que dele havia herdado para o trato com a pelota. Os reclames de Max não prosperaram.

Aquela família rapidamente desenhada pelo desengonçado vilão talvez jamais subsistisse à ambição de Carminha. De maneira escancarada, ela sempre manipularia o parceiro, fato ao qual, aliás, se poderia creditar todos os seus insucessos e sua inequívoca insegurança.

Pouco antes de ser assassinado, já a sós com Nina em lugar desconhecido, Max fez a última tentativa de determinar o seu destino. Ao ouvir da menina que deveria matá-la naquele instante, sem mais delongas, limitou-se a dizer que o faria apenas quando quisesse (“eu mato quando eu quiser”). Nem mesmo disso foi capaz. O sempre titubeante vilão perdeu o jogo antes de marcar um único ponto.




segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Nunca chorei o maltrato da vida

Nunca chorei o maltrato da vida - Roberto Barbato Jr

Nunca chorei o maltrato da vida. Não tinha dinheiro pra comprar coca-cola, cortar cabelo e nem comprar tênis. Sorvete e cinema, nem pensar. A escola era pública e o material, emprestado. Recebia os livros todos riscados, amassados. Não dava pra reclamar. Era a única maneira de aprender alguma coisa. O uniforme, minha mãe comprava sabe lá Deus com que sacrifício. Eu não gostava de estudar, mas também não tinha outra opção. Meu pai só existiu na minha imaginação. Ele é um daqueles pais famosos que grande parte dos brasileiros tem. Sim, é aquele sujeito que saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou. Felizmente, minha mãe sabia que o cigarro era uma desculpa e jamais alimentou a ilusão de que o safado voltaria. Não voltou.

Além da precariedade material, sempre fui feio. Quando digo feio, quero dizer feio mesmo. Coisa séria. Feio a ponto de as meninas fazerem cara de enjoo quando me viam. Feio e pobre, não teria chance nenhuma com ninguém. Enquanto a meninada se vestia para o cinema, eu ficava em casa, imaginando um jeito de vazar a roleta, sem pagar nada. Depois que passasse pela porta, a escuridão da sala me daria guarida. Ninguém me acharia. E, convenhamos, nem seria interessante o lanterninha correr atrás de um menino como eu. Se me achasse no escuro, certamente tomaria um susto.

Durante algum tempo tive prática em surrupiar a broinha de milho da padaria. Era bem fácil. Bastava entrar calmamente, ir até o balcão e pedir dois pães franceses. Quando a moça se virava para pegá-los, já era: estava na rua dando a primeira mordida. Não era bonito fazer isso. Eu não contava para ninguém, pois não queria que me achassem um cara esperto. Furtar a broinha não era questão de esperteza, mas de sobrevivência. E disso eu sempre entendi muito bem.

Percebi que o mundo não me daria nada de graça. Teria que brigar pra conseguir uma vida mais ou menos digna. É claro que eu nunca acreditei naquela conversa de que o trabalho dignifica o homem. Se tivesse um pouco de habilidade para o crime, tentaria o sucesso fácil, alheio ao trabalho empenhado. Pouco se me daria a tal da dignidade. Prefiro o dinheiro. A merda é que até nisso eu fui cagado. Pobre e feio, deveria ao menos ter vocação para o afano, a tungada perfeita, tal como conseguia com a broinha. Mas, qual o quê! Virei um bundão. Ao sinal do menor temor, já me via gaguejando, tremendo, titubeando nas ações.  

Preferi a submissão, é claro. Pra um sujeito como eu, é mais fácil a subserviência. Bastaria algum estudo e um pouquinho, só um pouquinho, de sorte. Arranjando um empreguinho medíocre, bem me satisfaria. Ficaria quieto, recebendo ao final do mês o suficiente pra parar em pé, de estômago cheio. Mas nem tudo foi tão fácil.

Quando a Mel me conheceu, anunciou o estrago que faria na minha vida. Teríamos filhos, muitos filhos. Ela me seduziu, engravidou na primeira transa e foi taxativa ao dizer que seria uma mãe muito zelosa. Por zelosa, eu entendi dedicação integral aos nossos filhos. Isso me encheu de orgulho. Acontece que eu sou pobre e feio, mas não sou burro. Logo saquei que teria de trabalhar pra garantir tanto zelo da parte dela. Então, vieram a Amália, a Amélia e a Emília (antes que alguém pergunte, foi ela quem escolheu os nomes das meninas). Paramos por aí.

Com essa prole toda, tive que mudar de emprego pra ganhar mais. Meu projeto de só parar em pé, bastando ter o estômago cheio, caiu por terra. O dinheiro precisava render e eu, também. Com sacrifício, criamos as meninas. Eu trabalhando, e a Mel cuidando delas.

O tempo se passou. Continuei feio e pobre. As meninas se casaram e a Mel arrumou um amante. No dia que descobri a traição, matei os dois. Como não tinha dinheiro para contratar um bom advogado, peguei um rábula que nem sabia direito o que era homicídio privilegiado. Hoje estou aqui cumprindo pena com mais oito na minha cela. Amália, Amélia e Emília nunca vieram me ver e, provavelmente, jamais virão. Dizem que a progressão de regime tardará a chegar. Não faço a menor ideia do que farei quando sair daqui, mas, honestamente, espero morrer antes disso. Agora, tenho que receber uma visita. Um sujeito quer me ver. Diz que é meu pai.