sábado, 12 de março de 2011

O chefe

O chefe - Roberto Barbato Jr

O chefe anda tomando alguma coisa estranha. Todo mundo que passa pela sala dele se pergunta o que é aquele pote com suco amarelo que fica em cima da mesa do computador.

Ele começou a tomar o negócio há pouco tempo. Desde então, suspeita-se que seu humor se alterou – ainda mais do que geralmente se altera, já que o cara é dessas pessoas identificadas como bipolar. Disseram que, só ontem, deu umas quinze patadas na secretária. Xingou a moça e disse que assim ela não se manteria lá. Depois, aparentando um bem-estar incomum, quase uma felicidade, foi para a sala de reunião com um cliente. O sujeito saiu de lá assustado, como se tivesse ouvido alguma barbaridade ou visto o capeta. Perguntou para a secretária se já poderia ir embora. Pois não, é por aqui, disse ela mostrando a saída. Quando a porta se abriu, ele saiu correndo, como um louco.

No meio da tarde, o chefe apareceu na copa do escritório com o suco amarelo na mão. A feição era de quem estava enfurecido. Todo mundo ficou preocupado e cada um foi se encolhendo, buscando uma alternativa – ou uma desculpa – para sair dali. Se ele desse mais um passo, ia ser um rebu. Teria até gente pisoteada.

Como a secretária conhece a família há tempos, resolveu chamar o pai para uma conversa. Explicou o que estava acontecendo, disse que ninguém mais se sentia seguro em trabalhar ali, sob as ordens e desmandos dele. O pai perguntou o porquê e foi informado que um tal de suco andava fazendo a cabeça do rapaz.

- Suco amarelo?, perguntou o pai.

- É, um composto estranho, ela explicou. Depois que ele toma, a coisa fica preocupante por aqui.

- Ah, sei – disse o pai. Por acaso, é um suco meio granulado?

- Esse mesmo – ela respondeu.

- Sei, sei. Deixe comigo!

O pai subiu para a sala do filho. Foi recebido a tapas. Mal entrou, levou um na cara. Começou a gritar e a pedir para parar. O filho batia mais, a mão aberta, tapa estalado. Houve um grande barulho: a estante caiu. Em cima do pai, claro. O chefe abriu a porta e o velho, todo machucado, lágrimas nos olhos, foi embora.

Depois de um mês, irresignados, pedimos demissão. Talvez os loucos fôssemos nós mesmos. Hoje, curiosamente, todo mundo toma o tal suco amarelo. Muita coisa mudou em nossas vidas. Felizmente não somos chefes. Ainda.

sábado, 5 de março de 2011

O rosto da Lili

O rosto da Lili - Roberto Barbato Jr


O que eu queria mesmo era encontrar um rosto bonito, nas capas de revistas. Parava em frente à banca e ficava procurando. Ia de uma em uma, capa por capa, fileira por fileira. Quando cansava, parava e comprava umas palavras-cruzadas. Na hora de pagar, voltava os olhos para as fileiras que tinham faltado na primeira busca. Enquanto o seu Altenor me dava o troco, terminava minha procura. Se dava tempo? Claro que dava. As publicações não eram muitas.

Com o passar do tempo, passei a ser mais exigente. Não queria só um rosto bonito, queria a perfeição: medidas, cores, volumes, tudo tinha que ser perfeito, inclusive o conjunto da obra. Seria difícil, mas quem sabe um dia....

Seu Altenor investiu na banca. Comprou umas revistas importadas, fez negociação com o pessoal da capital e passou a ser o vendedor exclusivo de tudo aquilo que a cidade não conhecia. Aos poucos fui me acostumando àquelas capas coloridas, cheias de detalhes sofisticados e mulheres lindas. Pena que não tinham o rosto perfeito. Acho que já estava me rendendo e a paciência, certamente, não iria longe.

No carnaval daquele ano, tomei um susto quando estava passando perto da banca. O seu Altenor me chamou para ver as fotos da Lili Neves. Queria me mostrar como era boa, como tinha o corpo perfeito. E o rosto também, falei. Era o rosto que eu procurava. Até parecia que eu havia feito o desenho dele e mandado alguém esculpir. A Lili Neves era um estouro!

Puta que pariu!, gritei. Por pouco não babei na capa da revista. Corri pra casa, peguei o resto da mesada no cofrinho e contei as notas com a esperança de que somassem o que eu precisava. Faltou grana e, para complicar, o dia de receber a mesada estava longe. Seu Altenor seria compreensivo? Naturalmente, deixou que eu o pagasse no início do mês seguinte. Lá fui eu com a Lili Neves para casa.

Na semana seguinte, ela estreou na televisão, como atriz de novela. Não perdi um capítulo. A trama não era lá essas coisas, mas a Lili aparecia todo dia. Sua interpretação não era ruim, não. Dava lá alguma mostra de que seu futuro na TV seria promissor. Depois, veio a segunda novela. A Lili fazia o papel de uma mocinha pobre que foi pro Rio de Janeiro tentar ganhar a vida. Deram um jeito de enfeiá-la. Até bigode colocaram nela. Que sacanagem! Só quando se casou com o Aderbal – o cafa da novela – é que apareceu bonita para todo mundo. Não dava pra acreditar....

Nessa época, a Lili já havia se convertido numa espécie de obsessão. Eu sonhava com ela, noite sim, noite não. Se perdia o capítulo da novela, aparecia no meu sonho pra me contar o que tinha acontecido, como se ela mesma fosse a autora ou roteirista da trama. A Lili conversava comigo, frente a frente, o hálito gelado, a língua se movendo em câmera lenta. Que boca! Depois, ia embora jogando um beijo pra mim. Só podia ser sonho.

Um dia, notei que a Lili havia ficado velha, uma cinquentona. Continuava linda, sem dúvida. Só consegui perceber que o tempo tinha passado porque encontrei a revista guardada num armário antigo, junto com o cofrinho da minha adolescência. Até hoje o seu Altenor me pergunta quanto eu quero por aquele exemplar cuja compra ele generosamente parcelou. Diz que paga à vista. Não vendo, não! Também jamais venderia a lembrança daquele dia em que conheci o rosto da Lili.