segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O inferno e a ausência de proporcionalidade

Há pouco, falei sobre Vidas secas, do Graciliano. O post versava, entre outras coisas, sobre a idéia de inferno, constante da imaginação do filho maior de Fabiano, protagonista da história. Logo depois, li no blog do Ozaí (http://antoniozai.blogspot.com) o conto "Inferno", também de autoria do velho Graça.

Fiquei matutando... Acometeram-me lembranças do tempo em que, ainda moleque, o inferno me botava medo. E bota medo nisso! Educado em colégio de padre (arghhhh!), freqüentador de missas até a adolescência e violentado, praticamente estuprado, pela ideologia católica, o inferno tinha mesmo que me apavorar. E apavorava.

Imaginava as grandes caldeiras borbulhantes, fogo alto, vermelhidão por todos os lados; o capeta com seu rabo pontudo, a orelha adelgaçada, a voz gutural e o terror tocado diuturnamente. Eu havia de passar a eternidade por lá por folhear as Playboys que, na década de oitenta, ainda imprimiam algum ar de proibição para a molecada. Ou então teria de arder naquele calorão por ter apertado tanta campainha e ter saído correndo, deliberadamente. Ora, esses delitos que jamais feriram a ordem moral pública ou incomodaram de sobejo quem quer que fosse constituíam-se de condições mais que suficientes para eu ter com o diabo. Era o que eu pensava...

Acho, inclusive, que alguém chegou a sugerir meu destino nos infernos porque eu falava palavrão. Talvez meu avô, minha avó, não sei... Eu estava, enfim, fodido. Não adiantaria nada rezar. O problema era meu comportamento, já reprovado e sentenciado ao fogo eterno.

Cheguei mesmo a sonhar com o capeta! Por alguma birra política que ainda hoje me escapa à compreensão ele assumiu a face de D. Pedro I. Onde já se viu? Eu tinha aula de história e aprendia os tributos que a colônia pagava à metrópole. Eram férias de 1981! Parei na cama dos meus pais: "O diabo está atrás de mim", justifiquei minha presença ali. Acolheram-me, naturalmente. A próxima noite...

Por extenso período, imaginava que o filho-da-puta fosse irromper dos infernos para me apavorar. Fiquei de sobreaviso: "Não se engane, uma hora ele vai aparecer!". Formei convicção. Ninguém me tirava aquilo da cabeça...

Mas o que me incomodava mesmo na idéia de inferno é sua ausência de proporcionalidade. Como poderia alguém pagar pela eternidade por algo que logrou realizar em tão pouco tempo? Ainda que vivesse muito – oitenta, noventa, cem anos –, e tivesse uma copiosa lista de pecados, seria pouco para justificar a permanência eterna junto ao chifrudo. Alguns pecados mais graves, por abjetos que fossem, jamais poderiam ser bastante para uma pena infinita.

"Estamos aqui só de passagem", foi o que algum imbecil me disse, querendo me convencer de que nossa existência era apenas um teste. Entendi, então, que vida era apenas um esforço probatório: havíamos de provar que merecemos o reino dos céus. Ou, ao revés, desmerecemos o inferno.

Não, Deus não poderia permitir isso! O castigo não poderia durar a eternidade, mas apenas o tempo necessário para a catarse do espírito. Estava decidido a preterir o inferno! Falaram-me sobre o purgatório e achei que a idéia não era tão ruim. Tanto melhor!, pensei. E passei a esquecer o capeta...

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Vidas Secas, Fabiano e o Soldado Amarelo

Vidas secas, de Graciliano Ramos é dessas obras que, depois de lidas, levam-nos à infeliz constatação de que deveríamos tê-las devorado há muito. Também nos sugere a idéia de uma leitura metódica, apta a sublinhar os pontos reputados realmente relevantes para a apreensão da riqueza do texto. Quando o li, indisciplinado, furtei-me a fazer qualquer anotação. Por isso, arrisco aqui, de memória, algumas observações.

Causou-me boa impressão o lado psicológico dos personagens. Em 1992, assisti a uma palestra do saudoso João Luiz Lafetá na qual ele tratava justamente desse assunto. Com a clareza e a didática que sempre norteram sua obra, o crítico paulista amarrara a trama do romance de sorte a mostrar como a composição psicológica dos personagens assumia importância capital na leitura do texto.

A linguagem empregada por Graciliano é, também, fundamental para entender o livro. Já comentei aqui no blog que o autor, embora fosse tributário das inovações do modernismo, reputava algumas inovações da linguagem uma besteira. Nem por isso deixou de inovar também...

As falas de alguns personagens são exíguas, raras mesmo. As descrições, em algumas cenas, parecem falar por eles. Fabiano, o protagonista da história, pouco se manifesta. Seus pensamentos, vão e voltam, assumem dimensões grandiosas em momentos específicos.

Um de seus filhos – o "menino mais velho", assim denominado na narrativa – tem obsessão pela palavra "inferno" e não admite que ela fique apenas no reino da descrição incompleta (a mãe fala vagamente em garfos quentes ou coisa que o valha...). Como a buscar a perfeita compreensão do termo, o menino insiste para que Sinha Vitória o explique. A pergunta é simples, como, aliás, o é a maioria das intervenções dos personagens: "Como é?". E recebe um cascudo...

E quanto aos flash-backs? Graciliano a eles recorreu com freqüência e talvez aí se encontre, de modo claro, o aspecto "psicologizante" da obra. Fabiano tenta justificar a si mesmo a razão de ter matado e comido o papagaio, animal de estimação da família. Necessidade, explica amiúde. E fará a mesma coisa quando se lembrar de Baleia, a cadela. Seria mesmo necessária sua morte? Não se sabe... Sinha Vitória, salvo equívoco, também se pergunta sobre isso.

Um rompante e inflamado sopro de esperança encerra o romance! O sonho de uma cidade na qual as crianças possam aprender e na qual a vida talvez não se lhes apresente com tanto desdém. Fabiano anseia não mais ser enganado e ter uma rotina diversa daquela até então havida. Não é apenas a expectativa de mudança da rotina, mas a expectativa da mudança das condições de subsistência de sua família, de ardor por uma vida digna, alheia aos desmandos da sociedade e da própria natureza que com todos fora cruel.

Por fim, comento aquilo que considero o ponto alto do romance e que poderia, sem nenhum risco, ser visto como um dos momentos mais fascinantes da literatura brasileira. Trata-se do embate travado entre Fabiano e o Soldado Amarelo.

Fora o Soldado Amarelo que, utilizando-se de suas prerrogativas oficiais, prendera injustamente Fabiano. Humilhara-o, deixara-o em situação realmente vexaminosa. Fabiano praguejara, inconformara-se!

Tempos depois, ambos se encontram e Fabiano tem a oportunidade da vingança. A cena do soldado acuado, tal como descrita no texto, causa suspense e suscita no leitor o desejo de logo conhecer o final da cena. É impressionante o poder de intimidação do protagonista do romance. Absolutamente mudo, ele consegue impingir um terror atroz ao representante das forças oficiais.

Somos levados a acreditar na possibilidade de uma revanche, uma desforra catártica. E, no entanto, surpreendemo-nos com a resignação do nosso herói. "Governo é governo": essa pequena frase talvez traduza o legado da opressão por tanto tempo cultivado no Brasil.

Alguém já teve a curiosidade de procurar no dicionário o significado da palavra Fabiano? Aurélio nos fornece as seguintes acepções: "Indivíduo inofensivo; pobre-diabo; Indivíduo qualquer, desconhecido, sem importância". Não é sem razão que o termo foi utilizado para dar nome ao protagonista de uma das obras mais belas da literatura brasileira. Preciosismo do velho Graça!

É só... Por ora é só...