domingo, 24 de fevereiro de 2019

Aquele som


Aquele som
Quando chegou na capital ouviu dizerem que havia um som novo, coisa de gênio. Um sujeito que não cantava, sussurrava, a voz melódica, macia. Duvidou daquilo e preferiu passar os dias tangendo as cordas do seu inseparável instrumento. Sabia que queria ir longe, mas desdenhava de como fazê-lo. Já havia rompido com a vida tacanha que tivera em sua terra natal, aquela cuja maior parte do tempo passava embaixo de alguma lenha frondosa, acompanhado do roto violão e de alguns amigos.
Ao passar pelo centro da cidade foi tragado para dentro da loja de discos. Pretendia ouvir alguma coisa. Provavelmente, um samba-canção, um bolero ou, talvez, um chorinho. Mas foi justamente com aquele som que se deparou.
Pegou o acetato, tirou da embalagem, se trancou na cabine do estabelecimento. Era mesmo coisa de gênio. O sussurro intimista entoando clássicos de Gershiwn e Cole Porter entremeado com o som aveludado que passava pelos três pistos e se projetava para além da campana o deixou extasiado. Era um fraseado contido, elegante, sem arroubos. A voz, inqualificável, alvejou em cheio sua alma. Arriscou acompanhá-lo no canto, baixo, quase rouco, suave até o limite. Aos poucos imprimia laivos de algum ineditismo e já se sentia promissor. Quantas tardes não passou ali, preso, inarredável, praticamente esbulhado da vida cotidiana?
Jamais o conheceria se não lhe tivessem cantado a bola. Ficaria perambulando pelo centro em busca de algo que pudesse imprimir ao seu violão – ou à sua voz - um compasso original, uma batida, uma arranhada. De certo ficaria intimidado pelo pessoal da zona sul que já estava à sua frente, na vida, na música, no mundo. Alguma novidade já estava em curso. Ele mal sabia o quanto aquele som iria mudar sua vida e, com ela, a música brasileira.

Em tempo: espero que os poucos leitores desse texto saibam de quem estou falando...