Estava casado e procurava um apartamento maior para alugar. Vimos – ela e eu – uma placa de "aluga-se", com o nome e o telefone da imobiliária. Para quem já procurou tanto imóvel e fez tanta mudança como eu, aquilo era somente mais uma aventura. Lá fomos ver o apartamento, cuja chave encontrava-se na portaria do prédio.
- Isso não é um apartamento! É um castelo!
O imóvel era grande, bem maior que o nosso. Estava relativamente bem conservado. Era uma construção antiga, com acabamento também antigo, algo vetusto. A cozinha, revestida por ladrilhos azuis, dava-nos uma certa melancolia, mas, sendo também ampla, não nos preocupou. O banheiro era verde, de cabo a rabo. Parecia banheiro de casa de avó. E por aí vai....
Entrei em contato com o proprietário da imobiliária. Pelo telefone logo entendi que se tratava de um senhor muito cortês, educadíssimo. Não podia tratá-lo, portanto, de modo informal. Com rapidez percebi que nossos diálogos deveriam ter algum rigor na linguagem.
Fui ao centro da cidade para negociar com ele o contrato de aluguel. Quando avistei o prédio comercial, notei que o prédio era velhíssimo, antiguíssimo. Não estranhei, contudo. Entrei no elevador e, aí sim, tomei um susto: havia ascensorista. Era um sujeito com chapéu de guarda que a todos perguntava o destino. Depois, fechava a porta e dava a volta na manivela. Que medo daquilo despencar....
Deparei-me com a sala da imobiliária. Precisa dizer? Era velha, móveis velhos. As cortinas, escuras e um tanto puídas, davam a impressão de que ali residia alguém avesso à luz (um vampiro?). Não seria injusto se dissesse que também senti, ali, algum cheiro de mofo.
Apresentei-me. Ele fez o mesmo, com cordialidade e muita formalidade. Após a conversa, fiquei de voltar com os documentos necessários e os fiadores. Antes mesmo de sair, propôs-se a redigir o contrato. Pediu que esperasse. Sem problemas. Imaginei que tivesse um modelo pronto no computador e que, após simples acréscimo dos dados pessoais, poderia imprimir sem mais delongas.
Ouvi um som inconfundível: o de uma máquina de escrever. Não era possível! Em 1997 os computadores já haviam invadido os estabelecimentos comerciais do Brasil. Quem não tinha um 386 e uma impressora matricial, daquelas que faziam um barulho absurdo?
Aquele senhor não tinha computador, não tinha impressora, tampouco tinha fax. Tinha várias máquinas datilográficas e muitos, muitos papéis carbonos. Foi assim que meu contrato foi impresso: em duas vias, uma original e a outra, cópia por carbono.
Mudança feita, havia chegado o dia de pagar pelo primeiro aluguel. Fui até a imobiliária. Entreguei o cheque e esperei pelo preenchimento rápido do recibo. Lá foi ele apegar-se às suas indeléveis máquinas e papéis carbonos. Essa rotina durou meses....
Um dia, recebi a notícia de que ele se mudaria para "instalações mais modernas". Ufa, já não era sem tempo, pensei! Para onde seria?
- Ao lado de minha casa, respondeu.
Mês seguinte, lá fui pagar o aluguel. Eram modernas, de fato, as instalações: piso de borracha, portas novas, mesas padronizadas, armários para arquivos.... Logo procurei por computadores e impressoras, sinais inequívocos da modernidade da época. Não me surpreendi ao notar que em uma única sala estavam concentradas várias máquinas datilográficas. Era ali que ele iria novamente bater o recibo do meu aluguel. Fez isso com muita calma.
Quando eu já estava com o recibo em mãos, pronto para ir embora, resolveu me contar uma história. A despeito da pressa, não pude me furtar a ouvi-lo, por questão de absoluta educação. No meio da narrativa, minha paciência estava na iminência de se esgotar. Graças a Deus, tocou o telefone! Mas ele continuou a contar a história. O telefone tocou mais uma vez. A história avançava. Mais um toque. Olhei para ele e, ato contínuo, para o telefone. Sugeri, com um meneio de cabeça, que o atendesse. Minha sugestão foi recusada tacitamente. Mais um toque. Ele avançou a narrativa. Mais dois toques e eu já demonstrava afliação. Repentinamente, ele interrompeu a fala, pediu licença para atender ao telefone. Aliviado, concordei. Caminhou lentamente e retirou o gancho do aparelho:
- Alô!
Desligaram.
Veio em minha direção e, um tanto indignado, disse:
- Essa turma de hoje não tem paciência para nada!
Controlei-me absurdamente para não gargalhar. Temi ser inoportuno porque aquela frase, dita daquele modo, era algo sério para ele. Tenho a convicção de que acreditava naquilo, como se toda urgência do universo inexistisse. Durante alguns instantes, refleti se havia algum lugar confortável para ele nesse mundo.
Morrera pouco tempo depois.
Bela história!
ResponderExcluirParabéns e obrigado por compartilhar.
Abraços,
Ozaí
Caro amigo, não seria o caso de pensar em - concomitantemente - aos lançamentos dos importantes livros "técnicos", pensar em enveredar por outros veios da literatura, e nos presentear com outros belos textos como este?
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